O novo canal d’água pode resgatar um antigo, afastando o soldadinho-do-araripe da extinção
Weber Girão
O Cariri é uma região cearense privilegiada por água, apesar de encontrar-se encravada na região mais seca do Brasil. Vem da Chapada do Araripe a explicação para que este lugar seja comparável a um oásis no deserto. A porção oriental desta grande formação geológica tem funcionado por milhares de anos como um funil gigantesco de mais de 270.000 hectares, captando água das chuvas e umidade das nuvens, concentrando-as em um vale profícuo. Somente as águas das fontes vertem quase 3.700 metros cúbicos por hora nas encostas da chapada entre Barbalha e parte de Missão Velha e Crato, o que seria suficiente para abastecer o consumo destes municípios, sem contar com a contribuição de poços e chuva. Destaca-se ainda que, este valioso recurso hídrico é apenas uma parte do que existia em um passado recente.
Este mecanismo natural manteve regada uma floresta única, que atravessou milênios de mudanças climáticas, e tal vegetação garantiu a integridade do seu próprio sistema de captação de umidade. A flora do sopé da chapada trouxe até os nossos dias uma relíquia abrigada em seu seio, o soldadinho-do-araripe, o único pássaro exclusivo do Ceará, símbolo que coroa este delicado tesouro que poderá nos ajudar a suportar as temidas mudanças climáticas, previstas para trazerem chuvas cada vez mais violentas e secas de intensidade crescente.
A forma como temos utilizado este oásis não pode ser considerada ambientalmente sustentável, pois a estimativa mais conservadora aponta a destruição de 77% de sua cobertura vegetal, legalmente considerada como Mata Atlântica. Nos ciclos agrícolas da cana-de-açúcar as águas foram desviadas de seu leito para o abastecimento de canais artificiais de irrigação, ou levadas, alterando a dinâmica hídrica natural. Nestas levadas seculares cresceu a vegetação ciliar, e o pássaro Criticamente em Perigo de extinção global as ocupou avidamente. Os leitos originais foram tomados por sítios, que posteriormente foram desmembrados em lotes para mansões. Os rios despidos de vegetação ribeirinha hoje cruzam gramados que ladeiam piscinas, passando a receber esgotos que cruzam cidades em frágeis canais.
Vegetação (verde) e suas matas ciliares (azul) na topografia do Cariri. A parte de cima mostra a cobertura original, enquanto a inferior mostra o que restou atualmente.
Apenas 177 casais do soldadinho-do-araripe resistem ao convívio com a nossa espécie, mas apesar desta situação grave, existem esperanças. A recuperação dos leitos originais ainda não parece possível diante do nosso atual estágio de desenvolvimento social (a despeito de a natureza encontrar seus meios de nos cobrar sua dívida ambiental através de catástrofes). O paradoxo é que resta uma chance de resgate naquela que foi uma ferramenta de destruição – a levada. Um destes canais, conhecido como Levada do Belmonte, estende-se por quase quatro quilômetros transpondo as águas da Fonte Batateiras até a micro-bacia do Rio Granjeiro, que cruza a cidade do Crato. A emblemática Fonte da Batateira é uma das duas maiores da Chapada do Araripe, tendo a gestão de suas águas regida por um pioneiro auto de partilha na metade do Século XIX, que dirimiu conflitos por 150 anos.
Praticamente abandonada, em parte das margens desta levada a vegetação vicejou, sendo ocupada pelo pássaro. Novamente pioneira, a Fonte da Batateira teria sido a primeira do Brasil a ter uma Comissão Gestora demandada pela iniciativa dos usuários de suas águas. E mais pioneira será a sociedade se ela entender a Levada do Belmonte como um equipamento de conservação. Suas margens completamente restauradas têm potencial para afastar o soldadinho-do-araripe do desaparecimento, diminuindo sua ameaça de extinção de “Criticamente em Perigo” para “Em Perigo”, segundo critérios internacionais. Ademais, a própria levada é um marco nítido, mostrando que as florestas entre sua beirada e a Chapada do Araripe devem ser resguardadas, como um santuário de 120 hectares.
Através do uso desta levada temos todos os elementos para salvar o soldadinho-do-araripe e o oásis que ele simboliza: um leito com água; uma comissão gestora; e a Área de Proteção Ambiental da Chapada do Araripe. Todavia, de onde viriam recursos para operacionalizar este plano? Talvez de outra transposição, a do Rio São Francisco, que terá um braço que vai margear toda esta floresta, onde é nomeado como Cinturão das Águas do Ceará (CAC). Esta obra monumental conduzirá uma vazão 25 vezes maior dos que aquela vertida pelas fontes do Cariri. O Estudo de Impacto Ambiental do empreendimento recomenda o apoio à criação de uma nova Unidade de Conservação na área, contudo, os 120 hectares protegidos pela Levada do Belmonte formam o setor prioritário, considerando que criam ambiente reprodutivo.
À parte das controvérsias sobe os amplos impactos ambientais desta obra gigantesca, sua construção no Cariri pode implicar na preservação das águas locais e no resgate de uma espécie que as simboliza. Para tanto, será imprescindível criar um mecanismo para que estas águas não sirvam para impulsionar monoculturas no planalto da chapada, sob risco de acarretar o ressecamento das fontes. Além disso, é importante encarar esta empreita como uma oportunidade de ajudar a natureza local, ao invés de atender apenas ao mínimo exigido pela lei, o que na maioria dos casos, é insuficiente. Desta forma, o verdadeiro desafio para a conservação da natureza é a nossa evolução como sociedade.
Crato e suas fontes com a presença do soldadinho-do-araripe, reproduzindo ou não (detalhe na figura seguinte).
Detalhe da figura anterior, destacando o percurso da Levada do Belmonte (linha amarela) entre fontes.
quinta-feira, 5 de abril de 2012
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